quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

CRÔNICAS DE UMA BARBEARIA II

Dona Aldegunda, seu Paulo e as leis

Dona Aldegunda era uma funcionária pública exemplar. De família tradicional na pequena cidade de Enforcados, sempre esteve de algum modo envolvida com os grandes acontecimentos da pacata cidadezinha. E foi graças a essa convivência com os personagens mais conhecidos de Enforcados que ela conseguiu seu emprego público e, posteriormente, um cargo de chefia no setor onde trabalha a mais ou menos vinte anos. Casada com Paulo, sessenta e poucos anos, homem simples, funcionário municipal aposentado, a mais de trinta anos aceita a personalidade forte de sua esposa e vive à sombra dela. Não é de briga, calmo, parcimonioso, frequentador contumaz da barbearia de seu Oswaldo, senta-se à cadeira de espera e dá um bom dia timidamente a seu Oswaldo e ao cliente que está por terminar de cortar o cabelo.
- Bom dia, seu Paulo!Tudo bem com o senhor? Responde seu Oswaldo.
O homem sentado à cadeira do barbeiro observa pelo reflexo do espelho seu Paulo balbuciar alguma coisa logo após as palavras de seu Oswaldo e, curioso, pergunta-lhe:
- O senhor disse alguma coisa?
O olhar de seu Paulo se espanta, ele observa com maior profundidade para o homem sentado à cadeira do barbeiro e retruca:
- Não, meu amigo, não, não... Só estava pensando cá com meus botões...
Seu Oswaldo nota o clima um tanto tenso após a chegada de seu Paulo. O homem sentado à cadeira é o Firmino, conhecido na cidade por ser marchante, açougueiro e ter uma banca na feira. Meio rude, embrutecido talvez pela ocupação escolhida, carregava logo abaixo do nariz um bigode de destaque que lhe cobria a boca, mas que estava devidamente aparado. Ficou no ar a impressão de que Firmino conhecia alguma coisa de seu Paulo e com isso guardava também algum rancor. O pacato Paulo sentiu o clima esquisito que se iniciou e, como de costume, prefere se afastar de situações desconfortáveis:
- Oswaldo, passarei aqui mais tarde... Vou resolver um negócio e volto já...
- Vá em paz...
Assim que seu Paulo some da barbearia, Firmino fala:
- Isso lá é um homem que se respeite! Um pobre diabo desse que vive às custas daquela desgraçada que ele tá casado...
Seu Oswaldo, um pouco assustado, retruca:
- Oxente, cabra!? Por quê?
- A peçonhenta da esposa dele! Aquela mulé não vale o que o gato enterra! E ele é cúmplice dela por deixar ela fazer as asneiras que faz...
- Vixe... E o que foi que ela fez de tão má assim pro senhor?
- Aquela fia duma égua aprontou uma comigo da peste... Acabou com um dinheirinho que eu recebia pelo governo pra ajudar apenas os puxa-saco dela que ela chama de amigo. Pra mim botou pra lascar, pros amigo ajudou... Só vivia dizendo "vamos respeitar as leis! Temos que respeitar as leis!", pra cima dos que não era amigo dela... Era uma fia duma égua mermo...
Seu Oswaldo, de praxe, tentou ser o mais cuidadoso possível pois sabia sim da fama de dona Aldegunda e preferiu não perguntar mais nada ao Firmino deixando que ele falasse o que quisesse, como ele se calou, o silêncio imperou no ar até que o velho barbeiro interrompeu dizendo que o corte já havia concluído. Firmino paga-lhe o devido valor e sai da barbearia agradecendo. Bastou seu Oswaldo pegar a vassoura para limpar os restos de cabelo aos pés da velha cadeira que aparece à porta seu Paulo.
- Pronto! Resolvi o problema e já posso fazer minha barba agora...
O semblante de seu Paulo já estava mais relaxado. De fato, seu Oswaldo notara que o clima com os dois na barbearia não tinha sido muito bom e percebeu também que Paulo só havia saído para não estar no mesmo lugar que o Firmino. Assim que se senta na velha cadeira do barbeiro, este lhe pergunta:
- Ê, véio Paulo, diga lá as novidades...
Seu Paulo olha pra ele pelo espelho, mas, como também era costume do velho barbeiro, observa apenas os cabelos passando a mão na barba mediana do velho aposentado que permanece em silêncio enquanto seu Oswaldo vai reclinando a cadeira para a posição de barbear e, assim que termina o procedimento, seu Paulo fala:
- O amigo sabe que eu não sou de briga, né Oswaldo, mas esse homem que saiu daqui agora à pouco não gosta muito de mim por causa do que minha esposa fez pra ele...
Fazendo-se de desentendido, seu Oswaldo retruca:
- Oxente, cabra?! E o que foi que sua mulé fez pra esse pobre de Cristo?
- Você sabe que Aldegunda tem um gênio bem forte... Ela só quis aplicar as leis, fazer o que tá escrito nas normas, mas ele não entende isso...
Seu Oswaldo solta um sorriso irônico pelo canto da boca e decide atiçar um pouco a conversa...
- Mas ele disse que pra os amigos dela a lei não se aplicava. Era verdade mermo?
- Claro que não. Minha esposa é muito correta! Ela segue as leis, as leis que ela segue devem ser respeitadas acima de qualquer coisa!
Seu Oswaldo amplia ainda mais o sorriso irônico do canto da boca e apimenta mais ainda a conversa, talvez com o objetivo de arrancar alguma coisa escondida do velho Paulo...
- Mas o senhor há de concordar comigo, seu Paulo, que existem situações em que as leis não podem ser aplicadas como tão nos papéis, né não?!
- Acho que não... O problema do mundo é justamente esse: se todo mundo seguisse o que tá prescrito nas leis, nas leis de Deus e nas leis dos homens, o mundo não taria desse jeito que tá... Todo mundo só ia fazer o que é certo e ninguém errava nada... O mundo seria melhor se todo mundo seguisse as leis, seu Oswaldo, bem melhor, com certeza...
Seu Oswaldo se cala, mas não se convence deixando o sorriso do canto da boca esmorecer paulatinamente...

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