domingo, 20 de julho de 2014

CRÔNICAS DE UMA BARBEARIA

Estou lançando, a partir de hoje, de cunho ainda experimental, um conjunto de textos no formato de crônicas que visam compreender e empreender uma crítica filosófica (filosofante) sob uma nova perspectiva ao cotidiano da sociedade a qual participo. Faz-se extremamente necessário salientar que os personagens aqui são fictícios assim como as histórias aqui apresentadas, portanto, qualquer semelhança com algum fato ou pessoa terá sido meramente coincidência, caso venha ocorrer. Saliento também que o foco maior dessa sequência de crônicas é a manifestação de ideias e o debate das mesmas, jamais o foco será atingir pessoa A ou B caso alguém possa encontrar alguma relação, por menor que ela seja.

Vicente Fiscina 

*   *   *


ARLINDO

Seu Oswaldo é um barbeiro muito conhecido em sua cidade, Vila dos Enforcados, em função de ser um barbeiro bastante antigo, filho de outro barbeiro também muito conhecido, seu Filomeno, que via na arte da barbearia um caminho para seu sustento bem como ficar a par dos assuntos da sua comunidade perdida nos confins do nordeste brasileiro. Pela sua barbearia passam políticos famosos da região, padres, comerciantes, banqueiros, feirantes, retirantes, professores, enfim, personalidades bem conhecidas do lugar como também pessoas comuns, clientes fidedignos que não veem na barbearia de seu Oswaldo apenas um lugar para se cortar a barba ou o cabelo como também um ambiente para se saber das "reais" histórias que ocorrem na região e que está na boca do povo.

Assim que seu Oswaldo abre sua barbearia, logo na segunda-feira pela manhã, dia intenso de movimentação em função da feira que acontece na cidade, eis que lhe surge o primeiro cliente quase caindo-lhe aos pés. É o nobre funcionário do banco da cidade, o Arlindo. Estatura um pouco acima da média, magro, quase careca, portador de óculos "fundo de garrafa", Arlindo teima em cortar rotineiramente seu resto de cabelo lateral com seu Oswaldo.

- Bom dia, seu Oswaldo. Vim cortar o cabelo, pode ser?

E seu Oswaldo podia negar o pedido do cliente? Fez gesto para que seu afoito cliente sentasse à cadeira, dirigiu-se religiosamente ao seu armário, pegou a toalha com a qual cobre do pescoço até a cintura o freguês já devidamente acomodado, abriu a gaveta, apanhou a tesoura e o pente, ensaiou os movimentos de corte, olhou para a cabeça do Arlindo pelo espelho à sua frente, e fez a pergunta que abre seu ritual:

- O de sempre?

Eis que o Arlindo com um sorriso no canto dos lábios respondeu-lhe que sim e buscou olhar nos olhos do seu Oswaldo para ver de fato se ele havia entendido a resposta. Seu Oswaldo, por costume, nunca olha nos olhos do cliente, muito menos olhos escondidos por óculos "fundos de garrafa". Deu as costas para apanhar o borrifador de água e iniciou seus trabalhos borrifando no resto de cabelo do jovem. Quando se posiciona para já cortar o cabelo da parte de trás de seu cliente, este lhe pergunta de supetão:

- Por que o casamento é mais caro do que comer uma puta?

Obviamente que seu Oswaldo toma um susto daqueles. Mas, como é também de seu costume, procura conter-se. Segura o riso com muito esforço. Leva a mão à boca e responde também de supetão:

- Depende da mulher...

Arlindo era recém-casado. Um funcionário do banco recém-empossado no último concurso, índole exemplar e que viera morar na cidade também recentemente. Possuía uma fama de homem feioso, certinho demais, metódico e, à boca pequena, já circulava pela cidade o boato de que era um rapaz inexperiente com as mulheres já que não possuía uma fama de "pegador", aquele cabra que não respeita nem irmã de amigo. Casou-se com a primeira mulher que lhe arrumaram na cidade, a Eufrásia, balzaquiana, muito corpuda, bonita, bem elegante e cobiçada por muitos rapazes da cidade, rapazes esses que ela nunca dera muita "trela", como ela mesma afirmava, "pois os homens de Enforcados ainda não me merecem". Muitos dizem por aí que casou-se com o Arlindo pelo dinheiro, afinal de contas, funcionário de banco ganha razoavelmente bem e poderia dar uma segurança financeira muito boa para ela, e não pelo fato de ele ser de fora da cidade. Seu Oswaldo sabia dessa história e talvez por isso tenha levado esse susto.

O silêncio, depois da resposta de seu Oswaldo, foi estrondoso. Seu Oswaldo, apesar da experiência, ficara um pouco encabulado com a pergunta refletindo se dera a resposta correta. Passara pela sua cabeça perguntar-lhe o motivo, mas achou melhor não, pois podia encabular o cliente e assim ele não querer mais retornar à sua barbearia. Pensou: "Como um cabra desse faz uma pergunta dessas casado com uma muié  da peste!? Será que esse fi duma égua ainda é donzelo?" Não resistiu e quis saber o motivo da pergunta de uma forma sutil...

- O amigo pergunta isso por mó de quê?

- Curiosidade... Pagar para foder uma mulher parece ser mais barato que estar casado...

Seu Oswaldo não se conteve e sorriu comedidamente. De novo refletiu: "Oxe!? Que diabo esse cabra tá querendo dizer?! Um cabra desse, careca, quase cego usando esses óculos "fundo de garrafa", magricela e com a cara de besta da porra, a única vantagem dele é porque é funcionário de banco?! Ainda por cima é casado com uma muié da porra... Que peste é isso?"

- Barato?! Como assim barato? Discurpe a pergunta...

Nesse instante entra o segundo cliente de seu Oswaldo, um senhor de idade, com um bigode de destaque, baixa estatura e trazendo consigo aquele cheiro ardido de suor de cavalo. Senta-se, dá bom dia numa voz gutural, e observa a arte de cortar o cabelo... Arlindo interrompe a observação do senhor de idade...

- Quando a gente é solteiro e trabalha, o dinheiro da gente é só pra gente mesmo... A gente não fica preocupado com as coisinhas de uma casa que a mulher casada geralmente fica como supermercado, feira, aluguel, contas em lojas, contas da casa... O homem solteiro gasta bem menos do que quando está casado. E se a mulher não trabalhar então... Aí que a porca torce o rabo...

Seu Oswaldo se sente um pouco mais à vontade e retruca:

- Mas o senhor é um funcionário de banco, quer queira ou não ainda é um emprego que lhe dá uma segurança de dinheiro muito boa, né não? É só o senhor saber administrar direitinho...

- Antes fosse, seu Oswaldo, antes fosse... Antigamente eu passava o mês com metade do meu salário e ainda sobrava! Juntava numa poupança todo o resto e já estava fazendo minha pequena fortuna. Inventei de casar e já gastei tudo! Tive que construir uma casa nova, comprar móveis novos, roupas novas, minhas compras de mercadinho e de feira duplicaram e agora não posso nem tomar aquela minha cerveja com os amigos nos finais de semana como sempre fazia porque senão a mulher diz que eu estou desperdiçando o dinheiro com coisas tolas... E tudo isso só fiz para agradá-la e olha no que deu... Nem comprar uma cervejinha pra tomar em casa mesmo eu não posso porque daí ela vai dizer que eu estou no caminho do alcoolismo, que eu vou ficar doente mais cedo, que vou antecipar a minha morte...

Seu Oswaldo sorri por dentro, não zombando da situação do pobre homem, sendo-lhe até solidário, mas sorri porque não imaginava que aquela bela mulher tão cobiçada pela comunidade masculina de Enforcados pudesse ser tão exigente com o seu cônjuge. Arlindo concluiu:

- Se tivesse solteiro, como tava antes, bastava chegar no cabaré, encomendava umas putas, gastava um dinheirinho, mas terminava por ali mesmo, sem envolvimento, sem conta, sem supermercado, sem enjoo de mulher...

Seu Oswaldo responde "tem razão, meu fio, tem razão..." demonstrando sua solicitude, porém fica irrequieto com essa afirmação do rapaz... Talvez não concordasse com a ideia de que o casamento fosse de todo ruim, afinal, ele está casado com sua senhora a mais de trinta anos. Teve seus arranca-rabo, suas crises de dinheiro, mas tudo se ajeitara em seguida. "Claro que no casamento gastamos mais dinheiro, mas se a gente se casa com alguém por amor, essas coisas nem arranha a gente", pensava. Todavia, se tem algo que seu Oswaldo aprendera com seu finado pai Filomeno, é que "o cliente tem sempre razão". Ao internalizar isso, o barbeiro nunca desdiz algo que qualquer um de seus clientes tenha afirmado. "Pode ser o Satanás", concluía seu pai, "mas se ele for cliente, sempre tem a razão!".

Passado cronometricamente os quinze minutos que seu Oswaldo levou para cortar os poucos cabelos deixados pela calvície de Arlindo, puxa-lhe a toalha de sua barriga magra e diz-lhe que já terminara. O funcionário do banco puxa a carteira cautelosamente, aproxima a parte do dinheiro dos seus olhos, conta cédula por cédula com a ponta dos dedos ainda na carteira recheada, retira o dinheiro e exige que seu Oswaldo reconte "para ter certeza", diz ele. Seu Oswaldo nem confere, guarda no bolso e se despede do homem com um sorriso administrativo. Faz sinal para o idoso que chegara a pouco e este se senta. Mal se senta e o senhor idoso já lhe fala olhando para o rastro imaginário do Arlindo...

- Esse tá lascado com uma muié dessas...

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